O que (quase) ninguém te conta sobre essa coisa de ser nômade digital

Eu comecei a escrever este texto há um tempo, mas nada como um bom timing para acelerar a sua publicação. Nesse caso, a deixa é o mais recente visto para nômades digitais aprovado em Portugal, país onde vivo. Agora, pessoas que trabalham remotamente em empresas estrangeiras poderão viver no país, desde que, entre outras coisas, comprovem o vínculo empregatício e uma folha de pagamento superior a 4 vezes o salário mínimo português. Irônico, não?

Apesar de contribuir ainda mais para o processo de gentrificação vivenciado pelo país nos últimos anos – vide as postagens sarcásticas da artista portuguesa Wasted Rita – entendo que esse é o primeiro passo de um movimento necessário, em termos de legislação, para lidar com a desmaterialização do trabalho em um mundo pós pandêmico e no qual os fluxos migratórios só tendem a aumentar. Até o Web Summit, conferência de tecnologia que acompanho desde 2017, já tem uma seção chamada “remote”, dedicada ao tema. 

Wasted Rita sobre o novo visto para nômades digitais em Portugal

Mas a ideia central do texto, na realidade, nem é sobre defender leis ou o trabalho remoto, mas fazer um relato bastante particular sobre uma certa romantização que existe – e só quem vive consegue desmentir – em torno da vida de “nômade digital”. Para quem ainda não sabe, essa é a vida de quem trabalha ao mesmo tempo em que viaja o mundo, ou de quem não precisa ter um posto fixo de trabalho.

Pois bem, toda vez que eu preciso montar o meu ~setup~ ou a minha área de trabalho em algum lugar ao qual eu não esteja habituada, eu me recordo de quando eu comecei a me interessar e pesquisar sobre o estilo de vida dos nômades digitais. 

imagem de um escritório improvisado em uma mesa de jantar
Imagem da área de trabalho improvisada em uma casinha em Bitetto, interior do sul da Itália

Houve uma época, lá em 2013, 2014, que eu desejei muito essa vida. Confesso que morria de inveja ao acessar o perfil de pessoas que pareciam tão livres e tão felizes e tão bem sucedidas em suas escolhas. Também pudera. A grande maioria das imagens sobre o assunto, composta basicamente por notebooks e pessoas alegres em lugares paradisíacos, sempre foi sedutora demais. Demais até para ser verdade. Que levante a mão quem nunca pensou “queria” diante da hashtag #escritóriododia.

Corta para 2022 e aqui estou eu, vivendo mais ou menos assim, uma vida de semi-nômade digital desde 2016, quando deixei o meu emprego no Brasil para fazer o mestrado em Portugal. Mas foi só há uns meses, inspirada por um texto do Paulo Emediato mandando a real sobre as tretas do nomadismo digital na sua ótima Marmitex, que decidi tomar nota tanto dos inconvenientes que essa vida pode ter, quanto do que eu aprendi a fazer para contorná-los. A diferença é que existe aí uma questão de gênero, embora eu me identifique com muitos pontos abordados por ele. É muito aprendizado!

Antes de seguir, no entanto, preciso pedir que você não me entenda mal. Longe de mim reclamar de qualquer flexibilidade, oportunidade, possibilidade de trabalhar de outros lugares. Isso tudo é um grande privilégio pra mim. Mas é importante falar sobre isso porque a quantidade de gente falando dos benefícios do home office/nomadismo digital é inversamente proporcional à quantidade de pessoas contando que, tal como tudo na vida, não vai ser o modelo ideal de trabalho de todo mundo.

Então vamos lá! Três aprendizados principais:

1 – É difícil ter ritmo e constância sem ter rotina

Há quem afirme odiar rotina. Mas é importante dizer que rotina é diferente de tédio. Nos últimos anos, tenho aprendido que nosso cérebro é uma máquina tão preguiçosa quanto incrível, preferindo repetir os mesmos pensamentos e movimentos a ter que se desdobrar para entender como pensar e fazer as coisas pela primeira vez (alô, poder do hábito). 

Quando eu estava escrevendo a dissertação e já viajando bastante para a Itália para visitar meu companheiro, houve uma semana em que passei por 5 cidades e bibliotecas diferentes. Eu consegui escrever naqueles dias? Consegui. Mas minha produtividade foi bem menor se comparada à rotina de ir todos os dias para a biblioteca da universidade, em Lisboa. 

Isso tudo sem contar a profusão de sentimentos e sensações físicas. Culpa por estar trabalhando em lugares tão lindos e cheios de coisas para fazer ou culpa por estar visitando algum lugar em vez de trabalhar. Dispersão a cada ambiente novo. Corpo estranhando camas, travesseiros, cadeiras, alimentação e clima. Preocupação com a segurança e atenção redobrada com equipamentos e documentos: “quem vai tomar conta disso enquanto eu faço xixi?”. E por aí vai!

Como eu aprendi a contornar

A primeira coisa foi criar hábitos e rituais que pudessem ser praticados independentemente de onde eu estivesse. Nos lugares mais “fixos” que tenho, como minha casa em Portugal, a casa do meu companheiro na Itália e a casa dos meus pais no Brasil, por exemplo, eu costumo deixar meus ítens de uso pessoal mais ou menos em lugares de simples relação para o meu cérebro. 

imagem ilustrativa de um escritório improvisado na sala de jantar
Escritório improvisado na casa dos meus pais, em Barroso, cidade do interior do estado de Minas Gerais

Tenho o mesmo modelo de tapete de yoga, atividade que independe de aparelhos ou espaço, nos 3 lugares, e tento manter a mesma rotina: acordar, me exercitar, tomar banho e café da manhã, trabalhar. Não consigo fazer tudo exatamente nos mesmos horários porque trabalho com diferentes fusos (vou falar disso no tópico a seguir), mas saber que existe uma ordem para as coisas me ajuda bastante. Salvo em viagem de férias, assim eu tento fazer em outras viagens a trabalho também.

2- O nosso tempo não é o do outro e vice-versa: haja hora pra tanto fuso

Atualmente, eu trabalho com fusos de Lisboa, São Paulo, Roma, Los Angeles e Moçambique. Ou seja, quando eu viajo de um lugar para outro que tem fuso diferente, os horários dos compromissos também mudam na agenda. E isso, claro, vai ter impacto sobre a rotina e o tempo pós-trabalho. Não são raras as vezes em que, em vez de “sextar”, eu vivo uma noite de sexta em reunião. Também já aconteceu de eu dar aulas das 22h até meia noite, por causa do fuso do Brasil. 

print de uma tela do zoom comigo, Ana Possas, pronta para começar a dar uma aula.
Aqui, um print de janeiro de 2022, enquanto me preparava para uma das aulas do curso de Análise de Tendências aplicada ao mercado editorial, que eu começava a dar às 22h por causa da diferença de fusos

Um dos desafios impostos por essa “desmaterialização” do trabalho, sobretudo no digital, é a clareza de limites sobre a hora de começar e de parar. Sem autoconhecimento, disciplina e alguma noção de controle do próprio tempo, o risco de sobrecarga aumenta (minhas pálpebras tremendo no fim do último semestre que o digam). 

Por mais que eu goste do que eu faço e entenda que é um privilégio poder ter trabalho e trabalhar com o que eu gosto, eu passo longe de romantizar qualquer excesso ligado a isso. Empreender não é uma tarefa fácil e por si só já provoca a sensação de que estamos trabalhando o tempo inteiro. Quando estamos em uma localização geográfica diferente da do trabalho, então, existe ainda uma cobrança subliminar de “preciso provar que isso está sendo feito” que pode ser bastante ruim. É a cultura de trabalho com a qual fomos habituades e é difícil mudá-la de um dia pro outro.

Outro desafio diz respeito ao tempo de resposta de e-mails e de mensagens nos aplicativos como whatsapp e telegram. No início, a falta de um automonitoramento acabava me deixando com a sensação de ter que estar 24 horas disponível para responder mensagens ou solucionar problemas. E com as diferenças de fuso horário, parece que tudo acontece o tempo todo.

Como eu aprendi a contornar

Eu utilizo a agenda do Google para todo e qualquer compromisso (se não está lá, não existe). Quando viajo para a Itália, por exemplo, a plataforma automaticamente pergunta se desejo atualizar a agenda para o horário local e eu sempre aperto o sim. Toda vez que faço um evento, coloco em parênteses o lugar ao qual o horário se refere, se são 19h (PT) ou 15h (BR). Leva um tempo até a gente pegar o jeito, mas eu não perco qualquer compromisso.

Sobre a carga horária de trabalho, esse tem sido, até hoje, um grande desafio. Eu costumo acordar bem cedo, por volta das 6h30, e fazer atividades físicas logo em seguida. Como não consigo ter um expediente que termine às 18h, também não costumo começar a trabalhar tão cedo. Tento fazer um “expediente” das 10h ou 10h30 às 19h ou 19h30, mas às vezes acabo estendendo.

Apesar de eu estar falando de horas, tenho entendido que, no meu caso, meu trabalho não se restringe ao tempo que passo sentada em frente ao computador. Mesmo nos meus momentos de lazer, tudo que me gera insights ou se conecta com algo que faço também é trabalho. Isso me ajuda a não me cobrar tanto. 

Já em relação aos e-mails e às mensagens de aplicativos, tenho conseguido me libertar da obrigação de estar disponível. Se chegam em um horário bem tarde para o lugar onde estou, eu evito abrir e sempre espero o horário de trabalho para responder. Se forem urgentes, a pessoa do outro lado provavelmente vai me ligar.

3 – “A solidão é fera, a solidão devora”

Quando trabalhamos presencialmente em uma empresa,  por mais que muitas vezes nos sintamos pouco produtivos por causa do excesso de interrupções, de reuniões que poderiam ter sido e-mails ou até mesmo da gestão das nossas relações interpessoais, perdemos um pouco a noção de como o simples fato de estar com outras pessoas também pode nos nutrir de diferentes formas.

Ao longo dos meus 10 anos de vida corporativa, perdi a conta das vezes em que fui confortada depois de desabafar sobre um problema pessoal ou pude ter ideias e projetos incrivelmente aprimorados por outros membros da equipe, só para exemplificar. Há 6 anos, os almoços com os colegas, as confraternizações de fim de ano, os happy hours ou conversas de cafezinho simplesmente deixaram de existir. Um impacto que, garanto, quem pôde trabalhar de casa durante a pandemia também sentiu.

Trabalhar de lugares diferentes é sim muito legal. Mas não se iluda, também é muito solitário. As trocas profissionais são fundamentais para que tenhamos contato com outras ideias e soluções, para que possamos alargar a nossa visão de mundo e para que aprendamos com o convívio. Isso, eu diria, é o que mais me faz falta. 

Como eu aprendi a contornar

Ao longo dos anos, eu também fui desenvolvendo uma rede muito especial de amigues e colegas de profissão para consultar, trocar ideias e, em alguns momentos, desabafar também. Inclusive, encontrei uma forma de prestigiar essas pessoas trazendo um pouco do trabalho delas no Ouvidorama podcast, projeto lançado em fevereiro de 2022 com o objetivo de falar sobre temas que fazem parte da estruturação e consolidação de negócios e marcas. 

Até antes da pandemia, uma outra coisa que me preenchia era me envolver em projetos que, de alguma forma, trabalhassem com o coletivo. Foi assim que, em 2019, minha amiga Luciana Borba e eu criamos o Brechó com Brunch, um projeto que promovia a conexão entre mulheres imigrantes através da economia circular, com brunch e troca de roupas e objetos que já não faziam mais sentido pra gente.

Agora, no “pós” pandemia, tenho buscado fazer a maioria das reuniões com clientes de forma presencial, quando em Lisboa, e mapear eventos que, entre outras coisas, promovem o networking entre mulheres empreendedoras. Os workshops presenciais que eventualmente também contribuem para que eu me sinta bem e em um ambiente de troca de saberes

dois computadores na mesa de uma cozinha
Foto tirada de um casal de clientes durante uma sessão de mentoria

Conclusão

Como tudo na vida, o nomadismo digital possui prós e contras. Por isso é preciso muito autoconhecimento para entender aquilo que faz mais sentido para você. Está tudo bem gostar de viver no mesmo lugar e ter a mesma rotina de ir todos os dias para o mesmo escritório. Mesmo porque, o mundo do trabalho é composto pelos mais diferentes tipos de empregos e necessidades.

Muitas vezes, a gente não faz ideia do tanto de perrengue que a foto bonita que a gente vê no feed alheio esconde. E acredite, eles são muitos! De toda forma, se você ainda tiver curiosidades sobre o tema, comenta este artigo. Vai ser um prazer te ajudar com mais informações. 😉

#nomadesdigitais #nomadismodigital

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