Precisamos falar sobre a decolonização, também, dos estudos de tendências

Há uns meses, assisti a dois eventos online sobre a pesquisa de tendências que foram bastante inspiradores e me ajudaram a elaborar muitos dos pensamentos que já vinha desenvolvendo em relação à área. O primeiro deles foi o BBK Trends Forum, organizado pela fundação bancária BBK e a consultoria em marketing C4E – the inspiration company, ambas de Bilbao, na Espanha. Um dia inteiro em que nove profissionais da área, em sua maioria mulheres, compartilharam um pouco de sua abordagem metodológica em torno da pesquisa de tendências orientada para o mercado. Os vídeos estão disponíveis aqui.

O segundo evento, com uma abordagem mais acadêmica, foi o “Trends and Culture Management Colloquium: new beginnings”, organizado pelos pesquisadores do Trends and Culture Management Lab, projeto desenvolvido dentro do Programa em Cultura e Comunicação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde fiz o meu mestrado. Foram 3 dias de partilhas sobre pesquisas desenvolvidas por investigadores do Brasil, de Portugal, da Espanha, dos Estados Unidos e dos Países Baixos.

#bbktrendsforum
Imagem: print de um dos slides da apresentação de Louise Byg Kongsholm, do Instituto escandinavo de Tendencias Pej Gruppen.

Fiquei com a cabeça a mil durante as duas semanas dos eventos, mas respirei fundo para deixar as ideias decantarem e conseguir sublinhar as reflexões que gostaria de levar adiante. A principal delas, impulsionada pela apresentação do trabalho “A tendência da pesquisa de tendências – complexidades que afetam e clamam por novas práticas”, das pesquisadoras Aline Monçores e Flávia Mendonça, diz respeito à necessidade de um olhar decolonial sobre os estudos de tendências. 

Antes de tudo, porém, é preciso contextualizar o significado dos dois termos mais importantes para o entendimento deste artigo, que são tendências e decolonial.

O que é tendência?

A começar pelo termo tendências, foi no livro Anatomy of a Trend, de Henrik Vejlgaard, que pude compreender melhor o porquê de a palavra ter se tornado tão popular no mundo da moda a partir dos anos 1970 (tenho certeza de que você também faz essa relação e logo pensa em moda quando ouve a palavra tendência, certo?!). Neste universo, a tendência está diretamente relacionada ao lançamento de novos produtos.

No entanto, segundo Vejlgaard, não é bem assim que um sociólogo de tendências a vê. Para o autor, uma tendência não diz respeito a um acontecimento passado, mas a uma previsão de algo que vai acontecer de uma maneira específica e que terá a aceitação de um grande número de pessoas comuns, tratando-se de um processo social e não de uma aparição repentina. A tendência, aqui, refere-se a um processo de mudança. E é sobre este processo que os estudos de tendências se debruçam. 

Para esclarecer ainda mais, deixo aqui a definição dos autores Nelson Pinheiro Gomes, Suzana Amarante de Mendonça Cohen e Ana Marta Moreira Flores (os dois primeiros meus orientadores) para o artigo Estudos de Tendências: contributo para uma abordagem de análise e gestão da cultura, que escreveram em 2018. Segundo os pesquisadores, “uma tendência é considerada como uma direção de mudanças e valores, representada por mentalidades, que se manifestará na sociedade de diferentes formas, a partir de objetos, padrões de comportamento, dentre outros”. 

De acordo com essa conceituação, a tendência, em si, não é visível. O que é visível são os conjuntos de sinais através dos quais ela se manifesta. Vou tentar explicar com um exemplo que utilizei há algum tempo, em meu perfil do Instagram.

Logo que a pandemia começou, fiz uma reunião com duas amigas pesquisadoras, Carol Lopes e Ana Bender, e começamos a levantar algumas tendências que poderiam emergir e/ou se acentuar com o confinamento. Uma delas foi a de “ressignificar a casa” porque, com mais tempo em casa, era provável que as pessoas começassem a olhar o ambiente em que vivem de uma outra forma.

De repente, os espaços que estávamos habituados a enxergar como os locais de passagem e descanso entre uma tarefa e outra tornaram-se o centro da maior parte das nossas experiências. A tendência se confirmou com o tempo, manifestando-se de diferentes formas.

  • Ressignificar a casa >> necessidade de mais espaço >> mudanças no mercado imobiliário.
  • Ressignificar a casa >> necessidade de espaços verdes >> aumento do consumo de plantas.
  • Ressignificar a casa >> necessidade de descanso e relaxamento >> aumento das buscas por “spa em casa” no Pinterest.
Estou no grupo de quem passou a cuidar de plantas.

O que é decolonialismo*?

Em uma entrevista concedida ao portal E-International Relations, em 2017, o semiólogo argentino Walter Mignolo resumiu um conceito extraído das pesquisas que desenvolve desde 1998 junto ao coletivo latino-americano modernidade/ colonialidade/ decolonialidade (MCD). 

Segundo ele, para pensar em decolonialidade é preciso antes pensar em colonialidade, conceito explorado pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano enquanto sistema de imposição ideológica da máquina colonial. Uma máquina articulada de forma a afirmar o Ocidente (oeste de Jerusalém, ex-Europa Ocidental e os EUA) como o principal detentor da razão na modernidade.

Em outras palavras, Quijano defende a existência de uma construção discursiva – e persuasiva – que institui o Ocidente como “salvador” e todo o restante do mundo como “necessitando de salvação”. Para citar um exemplo simples de como isso acontece, pense nos filmes distópicos e apocalípticos mais famosos aos quais você já assistiu. Quem salva o mundo nesses filmes?

Uma vez que o colonialismo é a afirmação da lógica da colonialidade, na qual existe a ideia de superioridade e manutenção do poder,  o pensamento decolonial visa ao questionamento e à desconstrução dessa lógica. Segundo Mignolo:

“A decolonialidade significa primeiro desvincular-se (separar-se) dessa estrutura geral de conhecimento para se engajar em uma reconstituição epistêmica. Reconstituição de quê? Dos modos de pensar, das linguagens, dos modos de vida e de estar no mundo que a retórica da modernidade desautorizou e a lógica da colonialidade implementou.” 

O pensamento decolonial, portanto, questiona as estruturas que vêm definindo o nosso modo de pensar, sentir, conhecer e existir, construídas, majoritariamente, por homens brancos, europeus e/ou norte-americanos e aristocratas. Para uma explicação ainda mais clara, deixo aqui este vídeo da Rachel Cecília de Oliveira,  coordenadora do grupo “Experiências Descoloniais: estudos e práticas”, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil. 

Decolonialismo e estudos de tendências

Questionar as estruturas que vêm definindo a nossa maneira de pensar, sentir, conhecer e existir até então é um exercício de desprendimento da lógica supremacista de um único mundo possível para uma lógica plural de vozes e caminhos. Isso significa questionar, sobretudo, todas as bases da formação e difusão do conhecimento. Logo, questionar as referências as quais costumamos ter como autoridade.  

Em um bate-papo bem gostoso que fizeram durante uma live no Instagram, as já citadas pesquisadoras de tendências Aline Monçores e Flávia Mendonça falam um pouco sobre como essa supremacia pode ser percebida. Entre os exemplos, elas citam as inúmeras “caravanas” de brasileiros que se formam todos os anos para os festivais de cinema, música e tecnologia South by Southwest, mais conhecidos como SWSW, que acontecem em Austin, no Texas. 

Sem descartar a importância dos eventos, elas mencionam o fato de que muitos dos exemplos dados ali como inovações podem ser facilmente encontrados no Brasil e, no entanto, não recebem a mesma atenção. 

Como profissional que transita entre os universos das tendências e do marketing, um exemplo que posso citar parte das minhas observações em torno da difusão do termo “primal branding”, presentes em um livro de mesmo nome do autor norte-americano Patrick Hanlon. O conceito reúne 7 chaves essenciais para que uma marca possa construir e crescer sua comunidade. Mas se a gente parar para pensar, o livro não traz nada que um bom trabalho de observações em torno de diferentes comunidades no Brasil não pudesse trazer. 

A pesquisa de tendências como motor de transformação social

Outro ponto abordado por Monçores e Mendonça durante a live consiste na ideia de questionarmos a quem as pesquisas de tendências estão a servir, uma vez que o poder de aquisição de um relatório ou de contratação de uma pesquisa especializada ainda está nas mãos das grandes empresas. 

Assim, existe um risco imenso de os estudos de tendências contribuírem apenas para a manutenção do sistema e da lógica capitalista. Um desafio complexo tendo em vista que, enquanto pessoas, também estamos inseridos nesse sistema.  

Saídas possíveis

O cenário que se desenha é desafiador para pesquisadores e profissionais, pois cabe a nós a responsabilidade de partir em busca de outras referências multidisciplinares e plurais, dar ouvidos a outras vozes e contribuir para a descentralização e a democratização do conhecimento, que ainda é privilégio de uma minoria.

Um dos pontos de atenção ao qual me prometi estar atenta diz respeito ao idioma. Boa parte dos conteúdos dos eventos a que assisti foram em espanhol e/ou inglês. Um fato que por si só já é excludente, tendo em vista que apenas 5% da população brasileira sabe se comunicar em inglês, segundo um levantamento realizado pela British Council. Apesar de os estudos serem de 2013, não acredito que muita coisa tenha mudado desde então.

Iniciativas para ficar de olho

Brasil Mood

Lançada em 2020, em plena pandemia, Brasil Mood é uma revista que, “diferentemente do rumo mercadológico que observa os movimentos no hemisfério norte para se inspirar, lança o desafio de fomentar a cultura brasileira para a nossa própria gênese”. Uma publicação sobre arte e cultura brasileiras cheia de referências que se conectam com a identidade do nosso país.

Teach The Future

Embora os Estudos de Tendências se diferenciem dos Estudos de Futuros em aspectos conceituais e metodológicos, os últimos têm sido precursores no desenvolvimento de trabalhos com base em uma perspectiva decolonial. A Teach the Future é uma organização sem fins lucrativos dedicada a levar o pensamento prospectivo e futuro para escolas e alunos em todo o mundo. Com uma equipe de educadores e líderes de pensamento na comunidade do futuro, a plataforma defende que jovens de qualquer idade podem aprender a pensar de forma crítica e criativa sobre o futuro e criar estratégias para influenciá-lo. 

Future Resources

Criada pela pesquisadora de tendências e futurologista Lydia Caldana, Future Resources é uma plataforma para decolonizar e desmistificar o foresight e a inovação por meio de eventos, fontes de informação e networking feminino. Vale a pena conhecer o trabalho, assinar a newsletter e dar uma olhada na planilha colaborativa cheia de referências interessantes disponibilizada no site.

Só para finalizar

Este é apenas o início de uma discussão profunda e importante que espero conseguir desdobrar também em outras esferas e conteúdos. Se você é colega de profissão ou alguém com interesse em saber mais sobre o assunto, deixe o seu comentário ou escreva para contato@anapossas.com. Precisamos mesmo falar mais sobre isso. E praticar também.

*Imagem de destaque: foto de um pedacinho da Rua Sapucaí, em Belo Horizonte/MG, feita em 2018 por Rodrigo Valente em colaboração com as pesquisas que integraram minha dissertação de mestrado.

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2 respostas

  1. Muito legal essa reflexão, Ana! Estive no sxsw esse ano e uma das discussões que alguns amigos e eu levantamos foi justamente a respeito de alguns aspectos que acho que se ligam ao que vc está falando: diversidade (a representatividade diversa no festival é mínima e acho que por várias razões), a própria estrutura de pensamento do festival, curadoria, etc. Agora, cursando uma pós na espm estamos estudando descolonização e tem tudo a ver. Enfim, foi ótimo encontrar esse artigo e as referências. Obrigado, Claudio

    1. Oi, Claudio. Obrigada pelo seu comentário. Fico feliz que o texto tenha encontrado ressonância e que sua turma de pós esteja refletindo sobre isso. Precisamos mesmo expandir o nosso olhar para outras referências, não é?!

Vem cá, quero saber a sua opinião!

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